24 de jul. de 2011

DOS DESASTRES E O PAPEL DO ARQUITETO

Diante dos recentes acontecimentos que destruíram e continuam a destruir sonhos, roubaram milhares de vidas de cidadãos de diferentes classes sociais nas cidades serranas do Rio de Janeiro e, diante do silêncio dos arquitetos - especialmente os acadêmicos, em período de férias - aos problemas "mundanos", compartilho uma reflexão incômoda e que tem a ver com a discussão sobre o papel ativo dos não-humanos no coletivo urbano.
A mensagem foi inspirada em matéria recebida de uma amiga, de autoria do professor titular da Faculdade de Saude Publica da USP, Paulo Capel Narvai, relacionada aos recentes e estarrecedores episódios.
Diz Narvai que o "indivíduo sem alternativa, que compra e entra onde não pode", que se relaciona com as políticas públicas de habitação, e aos planejamentos (sic) urbano, rural e regional que são tratados como coisa de particulares... ", assim como a frase: "é meu e ninguém tem nada a ver com isso... ". As possibilidades das pessoas despossuídas, sua luta pela sobrevivência e quando "as necessidades são imediatas e as decisões são movidas por desejos, vontade de resolver o problema de cada um, de cada família..." São questões que transcendem as necessidades e os interesses pessoais ou familiares.
Por sua relevância social, essas questões são (ou deveriam ser) de interesse público. As pessoas não se amontoam em lugares insalubres, de risco, porque querem; elas o fazem porque as políticas e ações públicas de habitação e de ocupação e planejamento territorial, em lugar de atender os interesses das gentes, são feitas para atender os interesses econômicos de determinados e restritos grupos. Os interesses das pessoas são coisas aparentemente sem importância.
O planejamento e a ocupação do solo urbano não atendem aos interesses do coletivo urbano, que reúne atores humanos e não humanos. É desnecessário argumentar que a chuva, a lama e as pedras têm sido, ao lado dos políticos, lideranças, moradores e visitantes locais, protagonistas ativos desta tragédia coletiva no Rio de Janeiro.
O processo de urbanização (ou desurbanização?) privilegia os interesses de setores da sociedade que, em geral, financiam as campanhas dos políticos em troca da aprovação de "leis tolerantes com ocupação de áreas tecnicamente não recomendadas para uso de habitação", e servem para abastecer os cofres desses grupos. Prevalece a lógica do já-que-pode-pra-ele-eu-também-quero-também-posso de especuladores e construtores (alguns são arquitetos) que aplicam parte de seus recursos para mover vontades, quebrar um galho aqui e outro ali e viabilizam um condomínio no pé da serra onde não poderia ser implantado.
São os sócios daquela “Construtorona S.A." que, quando não conseguem aprovar leis que viabilizem seus negócios imobiliários, usam seus empregados para subornar funcionários públicos corruptos para que o negócio se viabilize. Um tipo de "capitalismo do cotidiano" que explora e "vende montanhas e mananciais..." e que decide as políticas de ocupação territorial e de urbanização.
Fiel às suas raízes profissionais, a saúde pública relembra os esforços que redundaram nas políticas e ações urbanizadoras de sanitaristas como Oswaldo Cruz e Emilio Ribas, para erradicar os vetores das doenças tropicais que assolavam o Rio de Janeiro? Foi quando demolidam inúmeras habitações e alargaram ruas e avenidas, consideradas insalubres. Em Santos, foram contruídos canais para drenar a cidade.
Será que algum dia os arquitetos e urbanistas terão direito e reconhecimento de voz nesses assuntos? A julgar pelo silêncio da classe, é pouco provável. Isso indica uma espécie de direito divino superior que, mais dia menos dia, deve cair do céu. Enquanto isso, continuamos, ao lado do mercado imobiliário a densificar e ampliar (ou destruir?!) nossas cidades, e no lado acadêmico a produzir belos e consistentes tratados e argumentos. Em comum, o descaso e o desconhecimento sobre as questões das gentes e do ambiente. Tais procedimentos me fazem lembrar uma frase cunhada em tom de brincadeira quando cursei o mestrado em conforto ambiental: "a ética é, cada vez mais, uma questão de ótica".
Aqueles que questionam tais práticas são vistos como chatos ou românticos de dois matizes, - não necessariamente excludentes ou contraditórios -ou são socialistas que questionam o sistema, ou são ambientalistas que defendem o mato, os animais, os rios e os lagos, ou são ambos.
A responsabilidade pela destruição dos sonhos, das casas, das vidas de milhares de pessoas e animais, e do patrimônio cultural e ambiental das cidades em lugares atingidos não é um problema individual. Sua solução não se resolve com ações setoriais. Não basta responsabilizar apenas os políticos como insistem jornais e emissoras de televisão de circulação nacional. É um problema que, com maior ou menor parcela, atinge a todos.
A solução implica em rever os dogmas de uma economia feita de números e de lucro; em rever os limites do crescimento econômico e do crescimento físico das cidades e da população e as bases e fundamentos éticos de nosso sistema educacional. Implica ainda, em rever nossa cumplicidade com práticas do tipo ilegal, e daí?
Como denunciou Schumacher no final dos anos 60 (O negócio é ser pequeno), "a expansão da economia destrói a beleza das paisagens naturais com edifícios medonhos, polui o ar, envenena os rios e os lagos. Mediante um condicionamento implacável, ela rouba das pessoas o seu senso de beleza, enquanto gradualmente destrói aquilo que há de belo em seu meio ambiente."
O Rio de Janeiro, hoje mero arremedo de uma outrora Cidade Maravilhosa, submetido a um processo enfurecido de enfeamento e de destruição de sua natureza, que são - ou foram - a essência de sua região. A verticalização de sua orla marítima se assemelha a um tapume que esconde as suas belas montanhas.
Enquanto não forem modificadas as relações entre os humanos e o ambiente (aqui entendido como o conjunto de animais, plantas, artefatos e natureza), esses problemas tendem a se agravar. A cada ano, as tempestades e fenômenos ditos naturais, tornam-se mais violentos e frequentes. Dito porque penso se tratar de uma rejeição ao processo de crescimento que resulta de uma relação letal de causa-e-efeito.
Precisamos rever nosso entendimento de um mundo dividido em mente e corpo, interior e exterior, humanos e natureza, bom e mau, material e espiritual, ideias e realidade. Tudo isso se mistura em um coletivo que reúne os diferentes sujeitos (humanos e não-humanos) em uma rede complexa e dinâmica de relações.
Conforme observa a economista verde Hazel Henderson, precisamos reconhecer que as diversas crises, inclusive essa calamidade da região serrana do Rio de Janeiro, "estão todas arraigadas na crise maior de nossa percepção estreita e inadequada da realidade" e que "a economia não é uma ciência; é meramente uma política disfarçada". A autora sugere que a economia ecológica terá de "entender como as atividades econômicas estão imersas nos processos cíclicos da natureza e no sistema de valores de uma determinada cultura."
O problema da região carioca abalada não deve ser entendido como um problema dos outros (dos seus habitantes), ou como um problema do sistema de valores da região serrana. É um problema coletivo de escala global que afeta e ameaça a integridade e a vida em escala planetária, decorrente em grande parte da irresponsabilidade humana. Em uma biosfera global interligada, não existe outro lugar ou outros interesses (Henderson).
Enquanto isso acontece em nossa volta e os alcaides do momento se ocupam de obras faraônicas e midiáticas – como o novo Museu (projeto de Calatrava), o Porto Maravilha, com a enésima reforma do Maracanã e as falácias sobre as obras dos jogos olímpicos de 2016 – nas Escolas de Arquitetura seguimos trabalhando com exercícios e temas de projeto tão importantes e necessários quanto uma casa de um filósofo em uma ilha deserta, tema que, segundo Abelardo de Souza, justificou a reforma do ensino de arquitetura implantada por Lúcio Costa em 1930.

Mudanças? Só se um milagre cair do céu e nas mãos certas.

Paulo Afonso Rheingantz é arquiteto, doutor e professor associado da FAU/UFRJ

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