13 de mai. de 2015

E OS USUÁRIOS DAS CALÇADAS? ACESSIBILIDADE = DIREITO DE CIDADANIA

Há muitas décadas atrás, havia uma sapataria promissora na Rua das Flores[1] - que sempre tinha serviço. Na calçada em frente, havia um buraco escondido por um pequeno taco de madeira. Raro o dia em que alguém ao passar não tropeçasse e se dirigisse ao esperto sapateiro para trocar o saldo na hora. Um dia, houve denúncia e a fiscalização mandou fechar o buraco. Se fosse hoje, haveria uma clínica de traumatologia bem pertinho, não?

Pedra portuguesa, ladrilho hidráulico,  basalto irregular ou regular, lajes de grês: os revestimentos das calçadas de Porto Alegre são de vários tipos e contam a história da cidade. Tempos de vida diferentes, custos diferentes, resistências diferentes, marcando épocas, modelando vastas áreas urbanas. Nem  sempre são os mais antigos que se encontram mais deteriorados. Qualquer passeio, além de sofrer ação do tempo, de obras civis, da manutenção de redes urbanas, do uso, sempre depende do proprietário, responsável legal pela sua manutenção. Do jeito que se encontram hoje, os passeios devem ser cúmplices de traumatologistas, e sapateiros novamente. Ontem mesmo, numa visita ao Shopping Total, um rebaixo existente devido a uma tampa de concreto de uma caixa de inspeção provocou uma torção no pé de um amigo. A dor foi horrível, mas depois passou... Sorte dos proprietários.

Quanto se perde ao torcer um pé devido a um trecho com desnível inadequado ou sem marcações? Existem riscos a cada instante e com os pés não se brinca. Temos o direito a nos locomover em calçadas niveladas e bem construídas, com rampas e barreiras quando necessário. Devem oferecer segurança, ser visualmente marcadas e sem reentrâncias ou saliências.

Todo proprietário deveria fazer sua parte: preencher vazios com cimento e areia, rebaixar ressaltos, facilitar o acesso com marcações.

O Código de Posturas, de Porto Alegre é de 1972 e quem conhece o seu teor? Lá está escrito de quem é a responsabilidade pelas calçadas e por outras tantas coisas urbanas. Vale a pena ler. Tanta coisa que foi deixada pra lá... Será que décadas atrás, os cidadãos eram mais conscientes de suas obrigações?

Hoje, é tempo de pensar nos riscos dos proprietários também. Que tal indenizar um usuário que machucou o pé? Bateu a cabeça? Ficou incapaz? Se a Prefeitura notificou o proprietário e ele não corrigiu os defeitos no passeio, ele terá sérios problemas. Mas se a Prefeitura não fez a sua parte, ela será co-responsável. Os tempos são outros. Muito a civilização teve que andar para chegar onde está e o usuário da rua se encontra mais cônscio de seus direitos.

De tempos em tempos, os proprietários dos prédios, responsáveis pelas calçadas, são acionados. Não se sabe com quais critérios a escolha do bairro vem sendo foi. Anos atrás, no Bairro Santana, houve multa para quem não deixasse tudo em dia. Síndicos leram no jornal e mexeram-se, assim como os proprietários de casas. Foi um surto coletivo... Depois, do jeito que ficou, ficou. As calçadas que não foram consertadas continuaram com problemas... Mas, por que a fiscalização não autuou em outros bairros? Ainda existem muitas calçadas ruins na Azenha e Cidade Baixa, ladrilhos em péssimo estado nas avenidas Vinte e quatro de outubro e Independência.

Qualquer pessoa pode se machucar em pisos irregulares, peças soltas, saliências, barreiras... A acessibilidade, tema atual, deve ser vista como um direito de cidadania. Todo cidadão tem o direito de andar sem perder o salto do sapato em reentrâncias, sem tropeçar, bater em alguma coisa ou escorregar e se machucar. Direito dos usuários das calçadas. Por que não?

No site da CEPAM - SP[2], você poderá encontrar a nova NBR 9050 em versão preliminar. Um trabalho avançado. Mas para você ter certeza de sua importância, alugue uma cadeira de rodas e faça um passeio pelas calçadas, percorrendo rampas, faixas de segurança em quaisquer três quadras da cidade. Descubra o motivo pelo qual você não conseguiu atravessar a rua, causas de tanto esforço ao se deslocar, observe-se, imagine-se um deficiente físico. Caminhe pela cidade em bairros de qualquer classe, levando consigo um carrinho de compras ou uma mala com rodinhas. Você vai se surpreender. Antes disso, olhe bem a sua calçada, imagine o que um deficiente visual faria, como uma pessoa idosa se apoiaria, e faça a sua parte. Descubra qual foi o critério para a implantação de um rebaixo de meio-fio, rampa de acesso a cadeirantes ou portadores de carrinhos de mão? Ninguém está livre de ficar incapaz, mesmo que temporariamente. Já envelhecer...

Faça esta experiência, leve junto os amigos, filhos. Nada como uma vivência para perceber que burlar a lei, é bater na própria cara.

 
Marilice Costi é arquiteta e urbanista, editora da revista O Cuidador. www.ocuidador.com.br


[1] Atual avenida Julio de Castilhos.
[2] http://www.cepam.sp.gov.br/v9/nbr9050/

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